domingo, 17 de outubro de 2010

Livre

Éramos cinco amigos. Eu, Tempo, Sorte, Acaso e Destino.

Após a segunda milha, a Sorte nos abandonara, deixando para trás a túnica e o alforje com cinco pedaços de pão. Exatamente quando o sol se encontrava no ponto mais alto do céu dos caminhantes, Sorte fitou por algum instante que parecia interminável com olhos arregalados o ponto onde as margens da estrada se encontram. Louca e repentinamente, sem olhar para trás, para os lados e para nós, se embrenhou nua na mata sem se despedir, sem dizer uma outra palavra qualquer. Olhei para Tempo sem entender. Tempo olhou para o ponto onde as margens da estrada se encontram e seguiu caminho em silêncio. Acaso e Destino olharam para o alforje e para a túnica. Olhei para eles também por algum instante. Voltei-me para Tempo para dizer algo e já não estava perto. Apressei o passo e corri mais um pouco até alcançar o Tempo, que seguia caminho, sempre sem dizer uma palavra. Uma palavra sequer. Acaso e Destino tiveram uma desavença sobre quem deveria ficar com a túnica e a quinta parte de pão. Não tomaram o caminho de volta, não se despiram, não se embrenharam na mata e não seguiram adiante. Abandonaram-nos e abandonaram o caminho. Lutaram até à morte por uma túnica e um pedaço de pão.

Seguimos caminho a fora o Tempo e eu.

No cair da tarde chegamos, enfim, no ponto onde as margens daquela estrada se encontram. Na verdade as margens nunca se encontrariam. Não era o fim. Nada era senão a bifurcação que levara Sorte à loucura.

Agora eu estava entre o caminho largo, de chão duro, homogêneo e socado pelo que parecia ser pisadas e milhares de pisadas de caminheiros, e o outro, estreito. Sobre este eu poderia dizer que era muito estreito, aparentemente pouco trilhado e cuja direção apontava para o por do sol. Eu estava exausto. Foi o único instante em que Tempo parou e sacou de seu alforje uma folha de ofício amarelada, uma carta. Era minha carta de alforria, escrita em letra escarlate. Meus olhos tiraram das lágrimas as algemas. As lágrimas devolveram aos olhos o brilho dos diamantes roubados e escondidos nos tempos da escravidão.

Estranhou-me apenas a data da carta de alforria assinada pela mão divina. A data era de um tempo antes do meu nascimento, um tempo que não se pode contar com o nosso sol, um tempo antes da fundação do mundo.

Tomei o caminho cuja direção aponta para o por do sol. Tempo acompanhou-me, fiel e sem dizer uma palavra.