Foi assim, Júlio, como tudo começou. Meu espírito estava presente no dia em que o universo conspirou a favor da sua concepção. Passaram-se 43 anos e ainda me lembro.
A calda monstruosa do rigoroso inverno de 1969 A.D. deixara um rastro de miséria. Todos os vilões abandonaram aquele lugar, exceto seu pai e o Fazendeiro. Na manhã da derradeira sexta-feira que precedia a chegada da primavera, ela, sua mãe, pronunciou em tom de reverente confissão a ele, seu pai, que o mantimento havia acabado estendendo-lhe uma caneca com a primeira dose do café que cai do coador. Estava ali sobre a mesa a última refeição. O café da manhã. Uma garrafa de café forte, outra de café fraco, pão, manteiga, mingau de fubá, meia-lua de queijo curado e seus seis irmãos em pé ao redor da mesa aguardando seu pai ocupar a cadeira que ficava na ponta. Da copa seus irmãos ouviram o costumeiro estalo da língua despregar-se do palato após seu pai tomar aquela dose de café encorpado. Sorriram e sentaram-se. Naquele dia seu pai não se sentou à mesa. Não se despediu dos filhos e da mulher. Antes de sair pela porta da cozinha deixou uma recomendação à sua mãe. Disse que, se não voltasse até domingo antes do momento em que o sol começa a declinar-se no oeste, ela deveria tomar os filhos e procurar o Fazendeiro. Ele saberia o que fazer. Foi até à casinha no fundo do quintal. Selou o cavalo, atravessou nas costas o arco, colocou no alforje meia-dúzia de flechas, empunhou o machado e partiu. Naquele dia sua mãe sentou-se à mesa com os filhos. O ritual era o de sempre. Cubos de queijo no fundo do prato. O mingau fervente em cima. Uma colherada de manteiga. Todos se derretiam à mesa.
24 horas depois, para além da floresta fria, deitado em prontidão junto à margem do rio que dessedentava a sede de uma corsa frágil, seu pai segurava firme o arco. A flecha apontada na direção do único ser vivo que ele avistara até então. Presa e flecha foram surpreendidos pela aparição do Lobo. O lobo de quem todos falavam no vilarejo, a quem temiam e julgavam ser louco. O ameaçador uivo solitário que atormentava os homens, roubando-lhes o sono. O som agudo, longo e triste nas noites frias que evocava a solidão de todos os homens. Ali, diante de seu pai, o lobo devorou a Corsa. Em seguida fitou seu pai com aqueles olhos cor de crepúsculo. Era um olhar terno e melancólico. E seu pai o discernira. Naquele momento percebeu que a fera o acompanhara durante toda a travessia pela floresta negra. Sentiu no imo que aquele lobo velara o tempo todo por sua existência e que guardava a integridade de todos os homens que atravessaram aquele lugar sombrio.
Subitamente apareceu um Leão. Seu pai sabia de sua existência naquelas bandas e o temia. Todos o temiam. Todos falavam dele. Diziam ser um leão enlouquecido que deixara o bando do qual era o macho alfa para ser rei de si mesmo. Caçava sozinho e devorava apenas carne humana. A fome de seus olhos sempre apontava na direção dos humanos. Ignorou completamente o Lobo e voltou-se para seu pai. O Lobo postou-se entre eles. De pelos arrepiados no dorso rosnava e babava. Não houve tempo para peleja. Impiedosamente o Leão dilacerou o Lobo, abriu-lhe as entranhas e devorou a carne ainda fresca e mastigada da Corsa. Misteriosamente o Leão perdeu sua força. Seu pai lançou mão do machado. O golpe foi certeiro.
Algumas horas depois um corpo esfolado de leão estava sobre o lombo do cavalo banhado de sangue. Sobre os ombros de seu pai uma manta feita de pele de Lobo cobria-lhe as costas, pescoço e o antebraço. Ajeitou o pé no estribo, montou o animal. Imponente, tomou o caminho de volta pra casa.
Antes de o sol começar a inclinar naquele domingo seu irmão mais velho tomava junto ao portão as rédeas do cavalo. Seu pai coçou-lhe a cabeça e foi tomar banho. Sua mãe ocupou durante toda aquela tarde em preparar aquela carne. Às 18:00 horas o jantar estava posto. Seu pai sentado na cadeira da ponta. Naquele dia sua mãe sentou-se à mesa. Silêncio. Todos estavam famintos. Todos estavam assustados. Todos se fartaram.
No final da noite sua mãe apaixonara-se novamente pelo seu pai. Ela se entregou a Ele e Ele se entregou a Ela. Amaram-se louca e selvagemente. Você foi concebido naquele orgasmo.
Foi assim, Júlio, que tudo começou.
É disso que você foi é feito.Ternura, fragilidade e entrega de uma corsa; a solidão amiga e protetora de um lobo; a força descomunal do encontro no leão; paixão e amor de um homem e de uma mulher. Esses elementos estão no seu sangue. Você tem sede viceral da corsa. Do lobo carrega em seus olhos a dor do crepúsculo. Sobrevive sem bando, sem dono e sem ambição de ser nada, exceto ser rei de si mesmo. Um leão que se desfola, se desnuda e se entrega no encontro. Você está vivo.
Foi assim que aconteceu. Por essa razão assim é.Javier Cardona