Depois da tempestade sempre vem a bonança, assim diz o dito popular.
Não é exatamente assim que a experiência se processa, ao menos na minha experiência não.
Depois da tempestade vem a desolação. Tudo ao derredor parece depósito de entulhos. Uma desordem fria e melancólica. Coisas sem alma espalhadas no chão de uma existência precária que, no entanto, arrasta uma esperança febril. São os objetos deitados como mendigos suplicando um pedaço de recordação.
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Passava os dias ali,
quieto,
No meio das coisas miúdas.
E me encantei.
Manoel de Barros
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um pé de chinelo que ficou orfão de seu par,
o rosto arranhado de Raul Seixas ao tentar escapar aos galhos da árvore seca enquanto era arremessado ao ar;
a cadeira macia de couro negro inutilizada pela ausência do corpo que não recebe mais seu aconchego;
a bota ainda nova que prometera longas jornadas por trilhas desconhecidas abandonada no canto da sala, cujos pés não anseiam mais pelo cumprimento da promessa;
Ralph Lauren de terno azul e transparente alcoolizado sobre a estante empoeirada do quarto balbuciando um poema perfumado de Maiakovsky e desferindo seus lábios bêbados e cambaleantes discursos lúcidos de Mário Sérgio Cortella;
o fone de ouvidos enforcado pelos próprios fios sem a chance de dizer uma última canção;
o fone de ouvidos enforcado pelos próprios fios sem a chance de dizer uma última canção;
o par de sapatos encarquilhados, sepultados na caixa de papel, surrados pelo uso, agora congelados feito uma pintura sombria e nostálgica de Van Gogh emoldurada nas quatro estações do tempo a fim de eternizar as pegadas de alguém que fez sua trilha com as próprias mãos;
a jaqueta preta agasalhada por um balde elegantemente vestido com uma camisa listrada de imagens do centro de Londres, destacando um Big Bang morto às 18:10 hs e uma cabine telefônica vermelha;
o cinzeiro de Amsterdam com uma faixa preta sobre o peito anuncia um luto. Sobre o palco de teatro construído de granito verde- ubatuba encena, plageando descaradamente a obra prima de Franz Kafka, sua transformação numa urna para guardar as cinzas da cremação do seu dono;
o álbum de família que não fora completado a tempo,
mas uma foto que resistiu à força da ventania permanece milagrosamente serena na porta da geladeira, presa por um imã como se fosse um homem jovem pousando para a lente fotográfica.
Enfim, objetos mudos e espalhados pelos cômodos do pequeno apartamento como se fossem muçulmanos dispersos pelo mundo inteiro que,voltados na direção da Cidade Sagrada, se prostram em genuflexão, entoando em uníssono a Maghrib, enquanto o Sol adentra as portas de treliça do crespúsculo e se silencia para ouvir as confissões desalmadas desses pobres instrumentos musicais desafinados que buscam na execução vigorosa do Réquiem de Amadeus Mozart um sentido que lhes justifique a existência.
E a Bonança? Onde está? De onde virá? Ela não virá de longe. Não virá de um outro lugar de fora. A Bonança permanecia serena dormindo o tempo todo no porão enquanto o tornado arrastava a matéria, sonhando um sonho em que um menino fora levado a um País das Maravilhas. Após a tormenta saiu o menino em segurança sob os escombros à procura do bate-bag que se lhe perdara das mãos, presente que ganhara no último aniversário. Distraiu-se o garoto com as próprias mãos vazias e sentiu nelas a liberdade de agarrar-se ao novo.
Trecho do livro O Umbigo de Adão, uma cicatriz de dor e de prazer da existência - Javier Cardona, autor.
" E minhas perdas fizeram-me ver o quão livres minhas mãos estavam para agarrarem-se ao novo"
Pense comigo agora.
Sente-se sobre seu próprio corpo confortavelmente. Feche seus olhos e contemple a morte. Contemple sua própria morte. Imagine os detalhes dos preparativos, o velório, as pessoas que estarão lá, o que estarão falando, o que estarão chorando, a cova vazia aguardando, faminta, seu corpo ou o forno quente pronto a devorá-lo com o fogo da boca de um dragão.
Não tenha medo. Não se desespere, pois é exatamente isso que vai acontecer com você um dia. Vai acontecer comigo. Todos nós passaremos inevitavelmente por esta experiência.
Agora, abra seus olhos. Coloque suas mãos diante de si. Contemple suas mãos vazias. Você ainda está vivo.
Nossa capacidade de recuperação da dor de perdas de quaisquer naturezas é inversamente proporcional à ilusão de direito de posse e controle que julgamos possuir sobre o fluxo da vida, coisas e especialmente pessoas. Quanto maior for nossa ilusão de possessão sobre todas as coisas, menor nossa força de prosseguir na jornada da vida com alegria diante de uma perda . Muitos se sucumbem a ela. Por outro lado, quanto menor a força de posse, maior nosso ânimo de seguir adiante porque nos tornamos leves em nós mesmos.
Por contraditório que seja, a fugacidade da beleza da vida é que a torna bela e intensa. É a dialética contraditória da existência: quanto mais dividos, mais inteiros nos tornamos. E é uma tentação a que nos tornemos dela posseiros. Agarre-se à beleza da vida como a tela de cinema beija e se enamora de um filme. Todo filme tem seu fim. Dependendo do gênero, saimos chorando, rindo, refletindo, frustrados ... num misto de emoções. Deixamos a sala de cinema vazia, mas a tela ainda está ali, íntegra, aguardando uma próxima estréia.
por Júlio Diniz