Debaixo do cobertor azul cinzentado ainda repousava lânguido o sol. O ranger das engrenagens dos motores se antecipava na madrugada e as badaladas dos martelos na bigorna da lida anunciavam a alvorada num grito metálico e irritante. Nem o hálito adocicado das padarias e o olor divertido do café pareciam convencer aquele corpo pesado e preguiçoso da hesitação em levantar-se do leito do horizonte. Lento, o sol vacilava entre o efeito aguçador do desejo que lhe provocavam aqueles aromas e o receio da mesmice e da possibilidade de não experimentar o inusitado, o novo.
As lotações abarrotadas carregavam sonhos e ambições para desembarcá-los na estação da rotina. Corpos apertados uns contra os outros não se tocavam, não se sentiam. E as janelas passageiras percorriam as ruas da cidade sem apreciar o instante que passava o tempo todo.
Foi bem ali, entre os coletivos que se enfileiravam num ponto de embarque e desembarque, que se formou um espaço como que uma tela de cinema, onde o inusitado editou uma cena da vida que marcou minha memória e abriu minha consciência para a significação e significância do que é o momento presente. Foi uma cena muito rápida, mas digna de uma representação gráfica como iludida tentativa de eternizar o belo que foge.
O fato é que naquele local de ponto de ônibus ocorria um descarregamento de flores. Como formigas à porta de sua galeria os carregadores adentravam com aquelas caixas de flores figurantes no Centro de Convenções Minascentro: uma colação de grau, conferência de auto-ajuda ou palestra de enriquecimento pessoal e profissional, quem sabe. Para lá foram carregadas com a finalidade de adorno e, posteriormente,seriam descartadas.
Durante o carregamento uma das flores caiu no chão revestido de pedra portuguesa entre folhas que se precipitavam das caixas e espraiavam pela calçada em meio a toda aquela pressa e tropel dos pedestres.
Foi exatamente a figura mais improvável aquela que passou, agachou-se, apanhou a flor, a trouxe junto de si e a cheirou, enquanto seguia seu caminho. Sim! Aquele homem de meia idade, de aspecto rude, protagonista de uma cena que se eternizou na minha mente por destacar aquela flor que se perdeu, remeteu-me a imagem daquele Bom Pastor que, deixando as 99 ovelhas no aprisco, foi em busca daquela uma que se extraviou.
Foi um breve momento, mas extremamente denso.
As flores são poderosas. Sua fraqueza pode estar no receio do tempo, mas sua força está no poder que têm de aprisionar o tempo no instante e guardá-lo na fragilidade de suas pétalas.
Não dariam todas as outras flores que se foram e se perderam na ornamentação o glamour que não lhes pertencia em troca daquele momento único e exclusivo?
Não renunciariam os anjos suas asas para ser aquele homem que toma a flor e se delicia em seus sentidos daquela suave fragrância, terna textura e mágico matiz?
Não se desvestiriam as estrelas distantes no céu de seu brilho frio para se sentirem acalentadas por aquelas mãos?
Não renunciariam os homens todo o poder, riquezas e status de uma vida inteira sem amor, por um breve, mas autêntico instante de atenção e amor ao que de fato se é?