Sou também meu passado e desafio a mim mesmo a discordar do clichê Não se vive de passado, ou imponho a mim uma ótica diferente sobre o tema.
Eu sou meu próprio tempo. Eu sou um “sendo” o tempo todo. E gosto de pensar o tempo em termos de categorias: tempo físico, tempo natural, tempo urbano, tempo-consciência, sobretudo.
Não gosto de pensar, por exemplo, em tempo passado como aquela dimensão a partir da qual se faz contabilização de saldo. Não há uma foz que assinala a imensidão de novas águas, se não houver todo um percurso de um rio. Não há como descartar o passado, seja ele bom ou ruim. O passado é como um rio que se torna mais volumoso, mais denso e abrangente. Não há, portanto, uma retrospectiva a se fazer como se o passado estivesse desassociado de mim de maneira tal, que minha relação com as lembranças de minhas histórias seja meramente objetal. Por isso não gosto da metáfora que sugere a vida como um livro que a gente tira da estante e ... - "Eis aí a minha vida" - embora a (auto) biografia de um ser humano se justifica pela densidade com vive ou viveu sua existência. Nessa perspectiva não existe passado. O que passou me fez até aqui, logo carrego comigo todas as marcas, os ganhos e as perdas. O meu passado é minha educação e minha experiência vivida no tempo. Logo, passado ainda é. Sendo assim a soma de todos os meus equívocos, acertos, desejos e náuseas, escolhas e arbitrariedades – e também dos riscos.
Viverei eu do passado então? De certo modo sim. Se sou a soma de todos os meus dias, inevitavelmente sou o resultado de todas as escolhas no tempo e dos acidentes indesejáveis e dos acasos oportunos. Eu sou meu próprio passado.
Se o momento instante que a vida me dispõe serve apenas para alimentar uma amargura letárgica com o meu “sendo instante” e com tudo mais que o acompanha, certamente amanhã serei o mesmo, sem nada acrescentar, como se não tivesse saído do lugar.
Assumindo meu passado mudanças podem acontecer a partir de sua conexão e interação com o momento instante, e não com projeções do tempo futuro. Se o que sou hoje é resultado do que fui ontem, e se, por um acaso, isso não me agrada, esse mesmo “sendo” hoje me tornará o mesmo amanhã. Logo fala mais uma vez o passado. O não agradar-me do que sou hoje pode ser uma pedra de tropeço, mas pode ser também uma placa balizadora de novas vias a serem escolhidas. Se o momento instante que a vida me dispõe serve apenas para alimentar uma amargura letárgica com o meu “sendo instante” e com tudo mais que o acompanha, certamente amanhã serei o mesmo, sem nada acrescentar, como se não tivesse saído do lugar. Ora, é aqui que toda lamentação se torna extremamente frutífera, caso a ela se aliar a consciência do fato de que o amanhã ainda não é, e pode ser tudo ou pode ser nada, não deixando de acrescentar o fato de que não há controle, não há visão linear e estanque do tempo e nem basta traçar linhas cartesianas para se obter bons resultados. Só a partir da constatação dessa obviedade eu consigo “esquecer das coisas que para trás ficam, e avançar-me para as que diante de mim estão” - como afirmou São Paulo. Por saber-me ser passado, posso desvencilhar-me de tudo o que leva à estagnação.
O tempo que se me acrescenta cada dia faz-me mais um pouco, acrescenta-me no tempo que me é tirado. Quanto mais se tira de mim, mais me percebo inteiro. Essa é a categoria de tempo a que chamo de tempo-consciência, tempo que não habita espaço nem velocidade.
Igualmente a verdade aparecerá como uma ruga na face do tempo.