Resolvi hoje não matar mais as aranhas que insistem habitar meu apartamento.
Durante anos eu faxinei os cantos do teto e lá estavam elas novamente. Enigmática e pacientemente teciam as mesmas teias as mesmas outras aranhas. Um milagre da ressurreição envolto numa mortalha misteriosa, um arranjo sutil, atrevido e desconcertante de enternecimento que, com ternura, subjugou-me à servidão.
Suspeitei de que queriam dizer-me algo. E pareciam falar de mim. Dispensavam-me sempre um perdão alvitreiro de simpatia, um gostar amistoso, um amor. Não se importavam com novidades ao abraçarem-se em suas teias como aceitação de sua existência. Tão reconciliadas consigo e com a rotina que rotina parecia não existir.
Eu mesmo tive o desejo de ser uma aranha. E por desejar ser uma aranha, descobri que habitava uma aranha nos cantos do meu ser ao buscar a reconciliação com minha própria existência, responsável por tecer os fios tão débeis e precários da própria sustentação. Morava em mim um re-começo.
Já não me importarei mais com as idéias de desleixo, de desatenção, de rotina, da faxina desnecessária e da convenção de que em casa limpa não pode haver aranhas nos cantos do teto. Senti-me mais integrado com a beleza da vida, a beleza dos recomeços e da insistência de existir e de ser eu mesmo.
Agora, crescido e feito homem, sei que toda injustiça perpetrada contra as aranhas e suas teias não passava de uma associação com o terror impingido por filmes do gênero que eu assistia na madrugada quando menino. Instalou-se em mim, naquele tempo, uma aversão a aranhas fomentada pelo cenário soturno do abono da mansão mal assombrada, o mordomo repulsivo comedor de insetos e a presença do Drácula solitário que vampirizava a essência daqueles que ou por ele eram seduzidos ou dos que se atreviam ao confronto, contaminando-os com uma pavorosa natureza que não lhes era própria, a natureza do outro. Esse terror maior ainda me era sutil.
Cada fio de teia retirado desses cantos melancólicos me lembra cada fio de cabelo dos cabelos que se me escaparam por entre os dedos. Permanecerá comigo aquela que não se importará com as aranhas que agora habitam minha sala.
Terror mesmo é o abando por ver em aranhas inofensivas vampiros dissimulados.