segunda-feira, 19 de março de 2012

Profumo Uomo

Eu sou guloso



Assustado, de assalto, pulei precipitando-me até a extremidade oposta ao lado em que eu dormia. Por sobre o corpo lânguido, sem tocá-lo, a manobra acrobática lançou-me em pé no corredor apertado desenhado em L, entre uma das paredes da alcova, o guarda-roupa e a cama. A pressa daquele maldito relógio digital sobre o criado-mudo fuzilava impiedosamente dígitos vermelho-sangue. Não impedia, no entanto, que eu ainda fosse capaz de pintar, em pinceladas rápidas, vigorosas e inacabadas, uma tela impressionista que guarda a lembrança da fugacidade de uma beleza que existe entre luz e sombras e para além de qualquer contorno nítido do que possa ser real. A cama, o lençol embolado, tingido de um amarelo que variava sutilmente entre o brilhante e o encardido, proveniente da luz bruxuleante das velas artesanais, sentinelas da noite, da madrugada e de toda aquela manhã que se passara. E, ali, aquele corpo voluptuoso, a pele nua, macia e mansa, aquelas curvas, o bico protuso dos seios, o vértice onde se encontram as linhas internas das coxas, os pelos pubianos, aquele triângulo misterioso, a carne crua.

Eu estava perdido, atordoado, entre o desejo de ficar e a necessidade de ir embora. Recusava-me a aceitar que um orgasmo durasse tão pouco. Havia algo mais que me instigava. E era um cheiro que ejaculara na obra desse miserável Van Gogh sua rubrica, reivindicando os direitos autorais.

Somente depois daquela frenética e gulosa percepção é que me dei conta da dor provocada pela batida da cabeça no painel negro de estantes de vidro onde ficavam as velas, acima da cabeceira da cama, na insistência em manter-me lúcido a fim de encontrar a saída daquele labirinto. Puxou-me pelos braços ao chão e entregou-me a cueca box, o jeans amarrotado e a camiseta branca. Enquanto rapidamente enfiava aquela roupa no corpo, ela acordou também assustada:

_ O que aconteceu?

Apontei com a cabeça, fuzilando o relógio.

_ Preciso ir senão chego atrasado ao trabalho.

_ Assim?

_ Assim como?

_ Não vai nem tomar um banho, porquinho?! Transamos a noite inteira!

Desviei os olhos do relógio para o vestido branco indiano que estava no chão, enquanto, de pé, calçava apressado o All Star. Sorri um sorriso canalha.

_ Agora é que estou limpinho e cheiroso com seu cheiro. Já estou curado da inveja que tinha desse vestido que guardava pra si durante um dia inteiro esse odor que nunca sei decifrar de que é exatamente. Não me refiro a um Clive Christian Nº1. Ora uva, ora maçã verde, cravo, brisa do mar, mandarim, terra molhada, pão saído do forno, cheiro de mato. Na verdade, nunca consigo associar esse seu cheirinho a nada especificamente.

Cantarolei uma música improvisada:

Esse seu cheiro
Seu cheirinho
Que vem não sei de onde
Nas gordurinhas do seu lóbulo esquerdo se esconde
Feromônio, feromônios, 
Feroz hormônio

Cheirei meu braço, passei a mão na cara, cheirei a palma da mão e disparei a falar e gesticular ao mesmo tempo, como que encarnando um italiano:

_ To me sentindo um frasco de perfume ambulante, mulher! Eu não disse que um dia conseguiria isolar seu cheiro e fazer dele um perfume?! Tenho até receio da matilha de cães achar que sou uma fêmea no cio. Queria mesmo estar nas patas de um lobo, ao menos um dia. Deve ser fascinante ter um faro poderoso, apurado, extraordinário... Imagine você! Eu, um canis lupus. Você sabia que existe um labrador que cuida de uma garotinha diabética, capaz de detectar, pelo faro, a alteração de seu nível de açúcar e impedir que ela entre em coma? O cão começa a...

_ Psiu!

Impaciente, ela interrompeu meu entusiasmo.

_ Seu louco! Vai se atrasar!

_ É... Já to atrasado.

Beijei a palma da mão e estiquei o braço na direção da morena. Em seguida, voltei-me para uma mandala pendurada na parede que tinha um espelho no centro. Com a ponta dos dedos tentei, em vão, ajeitar os cachos. Por alguns segundos olhei profundamente para o reflexo . Dirigi a palavra ao homem de cabelo desgrenhado, franzindo o supercílio:

_ Canis Lupus.

Passei pelo corredor da sala até à porta de saída. Minha voz reverberou no ar:
_ Profumo Uomo, donna! Profumo Uomo!



Javier Cardona