Da beleza de todas as belas experiências
Das coisas especiais que estão distantes
Dos sonhos intocáveis
Das pessoas especiais que nos marcaram profundamente e hoje fogem ao nosso alcanceAs que partiram pra bem longe, as que se perderam ou foram perdidas,
As que morreram
Enfim, do Belo que mora num lugar distante, mora até mesmo num não-lugar,
Do Belo que foge
Tenho algo a dizer:
O Belo, como todas as coisas belas, como as pessoas mais belas que se nos arrebatam numa paixão fogosa, violentamente consumidora, sempre mora distante, num lugar distante, de acesso difícil e dolorido para que em nós resida sempre o movimento que, ao encontro dele, nos impulsiona, nos empurra a um próximo novo passo na direção de nós mesmos, nos brindando a possiblidade de ampliação das fronteiras de nosso ego.
Não existe beleza se não houver um olhar vivo, faminto e consciente que lhe atribua tanto valor. Não há beleza na dicotomia que a define entre interior e exterior. Padrões estéticos sutilmente nos enganam e, quando renunciamos o direito de nossa percepção única, digital e intransferível, despoticamente essa mesma estética, fabricada por alguma convenção ou até por nós mesmos idealizada, nos sequestra, cegando assim aquele olhar bandeirante e desbravador, fazendo-nos, ao mesmo tempo, enxergar aquilo que ela quer que vejamos como única alternativa, sem nenhum esforço de nossa parte em prosseguir no movimento. É por isso que perdas doem, saudade dói, paixão dói, ausência dói. Julgando haver alcançado aquilo que se nos torna Belo, dele nos apropriamos como reis de um extenso, profícuo e eterno reino, quando, na verdade, adquirimos uma estreita porção de terra onde cabe um corpo, um corpo inerte. Nasce um Narciso! A esse paraíso conquistado adaptamos nossa agenda, esquecidos tanto da liberdade do Belo que apenas nos empresta sua beleza como também de nossa própria autonomia em descobri-lo e ampliar a partir dele nosso universo. Desmemoriados da transitoriedade de todas as coisas, a dor da perda se torna o reverso da conquista, o lado avesso que expõe fios soltos, pontos, costuras desordenadas e caóticas desse tecido que nos agasalha. Nesse jogo arriscado, esses polos - conquista e perda - produzem em nós o mesmo efeito: Estagnação. O que muda é a sensação. Naquela, o estado confortável é de torpor, arrebatamento, frio que corta o estômago, um panapaná a fazer cócegas nas entranhas, suposta felicidade. Nesta, inquietante morbidez e sofrimento. O que ocorre, de fato, é a barganha da autonomia em construir-se responsavelmente no curso da vida em busca da própria individuação com estados de conforto onde se cria um mundo mítico de heróis infalíveis, dotados de poderes sobre-humanos ou, nos limites do reino encantado, mendigos existenciais que renunciaram a chance de protagonizar sua própria história e de doar-se ao mundo. Portanto, não é a perda, em si mesma, a causa maior do sofrimento. Não é a sensação de falta de chão que nos impede de caminhar adiante. Não está no objeto de desejo conquistado e perdido. Aquilo a que outrora atribuímos excessivo valor em razão da paixão avassaladora, de objeto passa a ser o sujeito em função de quem passamos a viver e de quem reivindicamos agora algum valor. O pai quer tornar-se filho do filho que gerou; o amante, por carência, suplica por amor; Dons Juans são subjugados pela carência, ciganas feiticeiras experimentam da própria poção mágica. Rompem-se, num colapso, os fios que desenham nossa unidade existencial. Morre um Narciso!
Apaixonamo-nos, na verdade, pelo movimento que nos tira da fixidez, pois nele nos descobrimos o quanto estamos vivos e do quanto somos capazes de promover alegria. Apaixonamo-nos por nós mesmos, pelo nosso olhar, nosso movimento, nosso coração que pulsa em contração e expansão numa busca incessante, tentados a dominar um mundo idealizado que não fuja ao nosso controle. Quem contempla despretenciosamente o Belo vê beleza integral em si mesmo e é dela que não se pode perder. E esta beleza de nós mesmos jamais será esquecida na medida em que não nos apropriarmos indevidamente dos objetos de nossa paixão e, em contrapartida, não nos tornarmos deles escravos.
Javier Cardona